Artigo: "Viver a vida" e o mito da democracia racial




Por Márcia Severino
filósofa negra e ativista do DF

O racismo e o mito da democracia racial no país se tornaram algo tão velado que somos capazes de ficarmos felizes por finalmente haver em uma novela das 8 da Rede Globo uma protagonista negra, no entanto, basta um olhar um pouco mais atento para verificarmos que "Viver a vida" de Manoel Carlos nada mais faz do que disseminar o mito da democracia racial.

A começar, os únicos personagens negros da novela são os que fazem parte da família da protagonista ou estão em sua órbita. A característica desses personagens aponta o que estamos acostumados a ver sempre nas novelas globais: os negros envolvidos com a marginalidade.

A protagonista que é a negra "gente boa" e rica está cercada de brancos, todos igualmente "gente boa" e ricos, por todos os lados: a sua grande rival é branca, suas melhores amigas são brancas, o seu trabalho como top model (algo de impossível visto que há poucas chances para as negras nesse mercado e as poucas que conseguem um espaço jamais são consideradas top models) suas colegas de profissão são brancas e, como não poderia deixar de ser, o grande amor da sua vida é um homem branco. Mesmo estando tão cercada pelo universo branco a personagem em nenhum momento é vítima de racismo, algo no mínimo curioso.

Por outro lado, seus irmãos negros são os problemáticos da família. O que dizer da personagem Sandrinha (irmã da protagonista) a típica garota problema. Essa sim está sempre em más companhias e nos lugares errados que são, respectivamente, o namorado negro e, com ele, os amigos da favela e a própria favela onde sabemos que por motivos históricos a população negra é maior, difernetemente, é claro, do bairro do Leblon onde a classe média alta branca tem como vizinha a bela e negra Helena.

Qual parece ser a lição que Manuel Carlos tenta nos passar com essa novela: "Negro, se queres ter ascensão social associa-te aos brancos, mas se queres o crime e a pobreza continue ao lado dos demais negros". A destruição da identidade negra e sua identificação com tudo o que é ruim em nossa sociedade são elementos bem presentes nessa novela.

Enfim, confesso que enquanto mulher negra não esperava que a Rede Globo, aliás uma das maiores disseminadoras da ideologia racista no país, trouxesse uma protagonista que questionasse o verdadeiro cotidiano da mulher negra que, entre outas coisas, nos mostra que essas mulheres são as que mais sofrem com a prática do aborto clandestino, que a maioria das mães solteira são negras - ambos os fatores consequência da rejeição que essas mulheres sofrem - que elas são as que mais morrem de doenças decorrentes de problemas ginecológicos por não serem atendidas nos hospitais pelos ginecologistas da mesma forma que as mulheres brancas são.

Assim, o inimigo se usa do próprio negro para disseminar a ideologia que o destrói e ainda sai como bonzinho por "conceder" ao negro o direito de ser protagonista, nem que seja apenas em uma novela.

Como diria nosso grande lutador Steve Biko: Sejamos negr@s e não apenas não branc@s.

*Coletiva de Imprensa - Pela Implementação do Comitê Técnico de Saúde da População Negra do DF.

*Coletiva de Imprensa - Pela Implementação do Comitê Técnico de Saúde da População Negra do DF.

*Ato no 20 de Novembro. Praça Zumbi dos Palmares e nossas Dandaras...

*Ato no 20 de Novembro. Praça Zumbi dos Palmares e nossas Dandaras...